Pesquisa e texto legitimam história do samba contada em livro essencial
Com a saída de cena de Hilário Jovino Ferreira (1873 – 1933), numa quarta-feira de cinzas em que a Mangueira comemorava o bicampeonato no segundo ano desfiles das escolas de samba, o escritor Lira Neto encerra a narrativa do primeiro dos três volumes do livro Uma história do samba. Intitulado As origens e já disponível nas livrarias em edição criteriosa da Companhia das Letras, esse primeiro tópico da trilogia se revela instantaneamente fundamental e já antológico por conta da pesquisa embasada que legitima a história contada por Lira Neto, cearense que veio morar na cidade de São Paulo (SP) em rota migratória similar feita décadas antes por Hilário Jovino, negro de origem pernambucana e criação baiana que, em 1892, foi para a cidade do Rio de Janeiro (RJ), onde se integrou a um processo de agitação cultural que gerou o samba, não em passe de mágica, mas ao longo de anos.
Conhecido como Lalu de Ouro, Hilário fundou ranchos pioneiros e sempre foi considerado uma das personagens coadjuvantes da história do samba. Mas o livro de Lira Neto dá a Hilário o devido protagonismo nesse momento seminal ao lado de nomes então geralmente ignorados como o carioca José Gomes da Costa (1890? – 1945), o Zé Espinguela, personagem essencial na história da Mangueira e dos desfiles das escolas de samba ao lado do cultuado Angenor de Oliveira (1908 – 1980), o Cartola, retratado como bamba de temperamento difícil. Tanto que a saga de Hilário Jovino Ferreira abre o capítulo 1 e fecha o derradeiro capítulo 11.
Com narrativa envolvente, baseada em fatos documentados pela mídia da época e na pesquisa de Vladimir Sacchetta e Antonio Venancio, Lira Neto apresenta uma história crível do desenvolvimento do samba, termo que, revela o autor, já tinha sido escrito em jornal de 1830, embora, na época, obviamente ainda não designasse o gênero musical criado a partir da aglutinação de negros cariocas e baianos na região central da cidade do Rio de Janeiro.
No primeiro volume da trilogia, o autor cobre período que vai de 1892 a 1933. Questionando o pioneirismo de Pelo telefone (Donga e Mauro de Almeida, 1916) ao relacionar várias músicas gravadas e catalogadas como samba antes de 1916, Lira dá o devido destaque a personagens como o compositor e pianista carioca José Barbosa da Silva (1888 – 1930), o Sinhô, denominado o Rei do samba na década de 1920 por conta da popularidade das músicas de ritmo amaxixado que compunha, às vezes pela própria inspiração, outras vezes se apropriando culturalmente da criação alheia, o que arranhou a imagem do artista.
Um dos méritos do livro de Lira Neto é perfilar sem romantismo os pioneiros bambas do samba como Sinhô e Ismael Silva (1905 – 1978), ícone da turma que circulava pelo Estácio e arredores. Turma da pesada – não raro envolvida com a polícia (às vezes por preconceito da sociedade contra os negros, outras por agirem fora da lei) – que criou as bases do samba tal como ele passou para a história, a partir de gravações de Francisco Alves (1898 – 1952), cantor e “comprositor” carioca que deu voz à produção do Estácio com a condição de assinar também os sambas. Na história do samba contada por Lira Neto, Sinhô foi também o rei do marketing (quando o termo nem era usado) e o compositor carioca Nilton Bastos (1899 – 1931), parceiro habitual de Ismael, recebe o devido destaque na criação de obra seminal.
Quando Noel Rosa (1910 – 1937), protagonista da urbanização do samba na década de 1930, entra na narrativa, Lira conta como o futuro Poeta da Vila teve dificuldades – impostas pelo cantor, compositor e pesquisador musical carioca Henrique Fóreis Domingues (1908 – 1980), o Almirante – para gravar as próprias músicas nos discos do Bando de Tangarás. Demolindo crenças genéricas como a que atribui a criação de instrumentos do samba a determinados nomes, quando na realidade a matriz da maioria deles veio mesmo da África materna, Lira Neto sustenta cada página do livro com dados da pesquisa, relacionando inclusive as fontes ao fim do livro, no qual consta também um oportuno índice remissivo.
Além de ir além na investigação da gênese do samba (expondo diferentes versões quando não há consenso sobre determinado fato), o livro Uma história do samba – As origens tem o mérito de sintetizar informações e dados verídicos (até então espalhados em jornais e outros livros) em texto sedutor que prende a atenção do leitor da primeira à última das 344 páginas (a história em si vai até a página 260). Que venha o segundo volume, dando continuidade à história do samba no período (áureo) que vai de 1930 a 1945. (Cotação: * * * * *)
(Crédito da imagem: capa do livro Uma história do samba – As origens, de Lira Neto. Arte de Cláudia Espínola de Carvalho)
Fonte: G1 Música