DOC CONTA A HISTÓRIA DE JOÃO SILVA, PARCEIRO DE LUIZ GONZAGA E AUTOR DE 2 MIL MÚSICAS
Premiado no Cine PE 2016, ‘Danado de bom’ estreia nesta quinta-feira
Na frase que abre o documentário “Danado de bom”, que estreia nesta quinta-feira no Rio, o cantor e compositor pernambucano (também narrador do filme) Siba decreta: “Enquanto existir sertão, vai existir forró”. As andanças com o pai na infância pelo semiárido brasileiro foram a maior fonte de inspiração de João Silva — “o poeta que o Brasil conhece sem conhecer”, como Siba descreveu seu conterrâneo — para compor mais de 2 mil músicas, entre xotes, quadrilhas e xaxados, gravadas pelas mais diversas vozes: de Luiz Gonzaga, seu maior parceiro, Gilberto Gil e Lenine, passando por Trio Nordestino, Alcione, Frejat e Zeca Baleiro até chegar ao grupo de gypsy punk Gogol Bordello.
— O que mais me admirava na obra de João era mesmo o espírito nordestino, um profundo entranhamento de sua alma com a cultura local, e a capacidade de escrever as coisas com falas nordestinas que ele criava — elogia Gil, que aparece no documentário interpretando, ao lado de Dominguinhos, “Aprendi com o rei”, composição de João gravada pelo mestre baiano no DVD “Fé na festa” (2010).
Gil não chegou a conhecer o compositor em vida, assim como o pernambucano não chegou a assistir a “Danado de bom”, filme que nasceu quando o próprio João Silva procurou a produtora Marianna Brennand, em 2006, para buscar o reconhecimento que nunca conseguiu ter ao longo de seus 78 anos — 60 deles dedicados à música. Um aneurisma de aorta abdominal o levou em 2013, três anos antes de a produção estrear na mostra competitiva do festival Cine PE, em maio do ano passado, quando saiu com quatro prêmios, entre eles o de melhor filme.
— O filme passou por diferentes editais, da pesquisa à pós-produção, e esse é um dos motivos de termos demorado mais de dez anos para lançá-lo — justifica Marianna. — João contava histórias muito mirabolantes, e queríamos descobrir o que ali era verdade. Que ele tinha sido um grande parceiro de Gonzaga era irrefutável, mas acabamos contando uma história de vida bonita e pouco conhecida, de um menino pobre e andarilho com nome e sobrenome tão brasileiros.
Para contar essa história, o filme, que terá exibições gratuitas em cidades do interior do país, conta com depoimentos de Elba Ramalho, Dominguinhos e Genaro, entre outros, e registra a primeira vez em que Silva volta ao sertão profundo, em uma viagem que começa em Arcoverde, sua terra natal, e termina em Crato, onde nasceu Padre Cícero.
Nascido em 1935, Silva não teve escolaridade formal. Segundo a diretora, Deby Brennand, neta do artista plástico pernambucano Francisco Brennand — Marianna é sobrinha-neta —, ele aprendeu o alfabeto com uma tia e, depois, passou a formar palavras lendo placas de cidades pelas quais passava com o pai nos tempos de andarilho. O autodidatismo seguiu na música: começou tocando pandeiro, aos 7 anos e, aos 10, já se arriscava no acordeom; para compor, usava apenas um gravador, para driblar sua precariedade na escrita.
— Como pode um compositor que escrevia letras hoje eternizadas ter sido quase iletrado? — observa Deby. — O que mais me impressionou no processo foi essa força de poeta, essa necessidade que ele tinha de botar para fora, mesmo não dominando a ferramenta.
Ainda jovem, Silva veio tentar a vida no Rio, a capital federal daquela época, com um objetivo principal: conhecer Luiz Gonzaga, seu grande ídolo. Nada matuto, logo se misturou ao meio artístico e passou a fazer parte do elenco da rádio Mayrink Veiga. Foi a cantora Marinês (1935-2007), que já vinha gravando letras de Silva, quem fez a conexão entre ele e Gonzagão.
Após um primeiro encontro não muito amistoso, pautado pelas duas personalidades fortes, logo as conexões musicais e a origem em comum aproximaram os dois. Gonzaga encomendava temas para Silva e recebia músicas prontas, com letra e arranjo (“mas ele sempre melhorava mais”, reverencia o compositor, em certo momento do filme). A parceria só não foi mais intensa por dois motivos: Gonzagão tinha Humberto Teixeira e Zé Dantas como compositores fixos, e não gostava da postura excessivamente boêmia de Silva, tema pouco explorado no filme por escolha artística:
— Optamos por fazer um filme mais leve, focado na música, na alegria dele, no João compositor — justifica Deby. — O começo foi difícil, João evitava alguns assuntos, se fechava. Eu cheguei a questionar se o projeto viraria filme, por conta da sua personalidade. Mas, em certo ponto, consegui quebrar a carcaça, enxergar sua alma de artista e poeta, e fui mudando minha percepção sobre ele. Era um poeta que falava do sertão sem cantar a seca, por exemplo. Sem lamentar. Ele falava sobre o forró, sobre as festas, inventava palavras(“Forrofiar”, “De fiá pavi”, “Chililique” são exemplos de títulos de músicas com palavras inventadas pelo pernambucano).
NO FIM DA VIDA, O RECONHECIMENTO BUSCADO
Foi falando sobre tais temas — e inventando expressões — que ele fez parte do período considerado o mais irreverente da carreira de Gonzagão, quando um percebeu que precisava do outro. O Rei do Baião já não vendia como antes e viu na verve assumidamente comercial do compositor uma possibilidade de virada — se Silva aceitasse pegar leve na bebida durante o “expediente”. Afiada e prolífica, a dupla seguiu até a morte de Gonzaga, em 1989, lançando sucessos como “Uma pra mim, uma pra tu”, “Rodovia Asa Branca”, “Forrofiar” (gravada por Alcione), “Deixa a tanga voar” e “Nem se despediu de mim”. Nos últimos trabalhos, Silva atuava ainda como compositor, arranjador, produtor e até vocalista, para ajudar o amigo debilitado. O ponto alto da parceria foi “Danado de bom” (1984), álbum que vendeu 1,3 milhão de unidades, o único disco de ouro da carreira de Gonzaga, que veio com o grande sucesso “Pagode russo”, aquele do “ontem eu sonhei que estava em Moscou…”, até hoje onipresente em festas juninas.
Na reta final da produção do filme, Silva começou a fazer alguns shows na região e passou a ter parte do reconhecimento que buscava. Em 2012, um ano antes de sua morte, o músico foi condecorado Patrimônio Vivo de Pernambuco.
— Ele estava feliz. João não queria ser famoso. Ele só queria ser reconhecido aqui em sua terra, e teve isso. Acho que está rolando lá no céu — conclui a diretora.
Fonte: O Globo